quinta-feira, 22 de junho de 2017

O MONGE

O MONGE

Essa é a história de um Monge.
Dizem que foi assim.
O monge caminhava só com o olhar perdido no sol que lentamente se punha por trás da Serra da Mantiqueira. Tomou na destra o terço antigo, regalo de um Bispo que gostara do clamor de suas orações. Parou. Observou-o arqueando o sobrolho direito. Que fazer com aquele tão querido objeto agora?
A fuga do Mosteiro não poderia ter sido mais fácil. Após 42 anos lá vivendo ninguém desconfiaria de que aquela saída, embora não autorizada, iria além das margens do rio para as costumeiras colheitas de pequenos frutos silvestres. Todavia, ali estava ele agora, muito além dos arbustos, pisando mato, espinhos, terra e pedras. Os pés descalços não se deviam a um esquecimento. Desejou como nunca sentir o mundo sob si mesmo. O mundo que, um dia, ele pensou ter começado a entender.
Retomou o passo ao mesmo tempo em que, num esforço máximo, atirou o terço nas águas do rio. Uma estranha sensação de heresia envolveu-o ao mesmo tempo em que não podia evitar um incerto alívio.
Ouviu mugidos ao longe. Cães ladravam em auxílio ao campesino que lutava por reunir os animais para a noite que rapidamente caía. Logo nada mais importaria. O homem com chapéu de palha, mesmo distante, acenou energicamente com um grande sorriso. Nada lhe restou senão devolver a gentileza, com amargor e medo. Voltou-se e vislumbrou o Mosteiro como um vulto escuro e majestoso. Logo estrelas pontilhariam o céu. Aquele mesmo céu que lhe serviu de altar, na janela de sua pequena cela, em infindáveis preces e êxtase de bem-aventurança.
O grisalho Monge jamais aprendera a nadar. Temia as águas, a correnteza forte que se afastava do Mosteiro em direção à cidade e sua vida mundana. Mas agora tinha uma indescritível certeza de que terminaria no frio daquele abraço.
Um pecadilho despedaçara sua fé, suas crenças, sua vocação monástica. A satisfação de um desejo pequeno, não carnal, simples, foi-lhe a chave para abertura dos portais do inferno.
Seu irmão gêmeo visitava-o de quando em quando. Insistia sempre nas desagradáveis perguntas sobre sonhos, pesadelos. Chegava a ajoelhar-se suplicando que contasse. Mas sempre, conquanto com carinho sincero, o Monge o soerguia garantindo-lhe que, ali, na atmosfera das orações e louvores, somente sonhava com os Anjos do Senhor.
O irmão se retirava e prometia voltar, sempre repetindo que um dia teria que contar a verdade.
Semanas, meses, anos. Numa tarde chuvosa o gêmeo chegara todo molhado. Vários clérigos acorreram com toalhas e roupas secas. A maioria olhava de soslaio para o Monge como a dizer “ele sempre vem, mesmo que chova”. Dessa vez tinha algo mais. Um pacote que recusou-se a entregar mesmo ao verter suas vestimentas. O pequeno pacote estava envolto em plástico, providência presciente da chuva que, desde a cidade, já se avizinhava. O pátio em que ocorriam as visitas foi excetuado e autorizaram a subida do visitante à cela do Monge. Longo tempo conquista pequenos privilégios.
Fechada a porta, o Monge estava levemente irritado adivinhando as velhas perguntas que ouviria. Não obstante, o gêmeo nada perguntou. Sentou-se na única cadeira deixando que seu irmão ficasse com a cama. Segurava o pacote contra o peito e fitava o irmão com doçura mas sem sorrir. Pela primeira vez o Monge iniciou o colóquio. O gêmeo baixou a cabeça ao ouvir cogitações sobre o dia a dia na cidade, os parentes, o trabalho, as visitas ao cemitério. Logo o Monge percebeu e aquietou-se.
O olhar de ambos congelou por infindáveis segundos. A interação gemelar gritou no silêncio reinante. O gêmeo estendeu a mão e ofereceu o pacote. Não respondeu à pergunta sobre o conteúdo. Levantou-se e abriu a porta. Antes que o Monge pudesse palavra dizer, um olhar ríspido e francamente acusatório calou-o.
Nunca mais o irmão veio ver seu gêmeo religioso.
O Monge logo viu que parecia um livro, mas era um caderno de capas duras. Estava todo anotado. Nícolas, seu irmão, havia escrito cada um dos sonhos, com a data e o horário em que despertara. Usara caneta de tinta preta e todo o grosso caderno estava usado.
Uma lágrima desceu-lhe à face percorrendo os sulcos que o tempo abrira na face. Fechou os olhos e esmagou as lágrimas vindouras. Deixou o caderno na cama e puxou levemente o pequeno armário suspenso em que mantinha sua Bíblia e aparatos litúrgicos. Ao solo caiu um caderno. De capas duras, grosso, todo anotado em tinta azul.
Página por página, palavras muito semelhantes rebuscavam as mesmas datas e horários. Ele sabia. Seu irmão sabia. Ele, por baixo de seu hábito, tinha a fé a lhe sustentar. Seu irmão, solto no mundo, só recebeu contumaz negação ao pedido de socorro.
Veio-lhe à mente o dia em que Nícolas lhe passou, disfarçadamente, o volume de um certo Zecharia Sitchin. Nícolas, que só o chamava de Monge, advertiu-o com o nome de batismo, Zacarias, de que o conteúdo poderia mexer com sua fé. O Monge ainda achou jocosidade ao apontar ser o autor de mesmo nome e que, portanto, estaria seguro.
O livro, ao qual seguiram-se alguns outros, falavam de tempos idos, muito antes da estruturação da fé cristã. Tratavam da tradição suméria e do surgimento do homem por interação com seres de outro planeta.
Zacarias iniciou a leitura, maçante e tediosa, julgando que Nícolas certamente havia exagerado muito. Ainda assim, eis que a disciplina rígida da formação sacerdotal o fazia terminar cada livro que iniciasse. E foi assim que, vencida a resistência inicial, ultrapassados dois terços da leitura e com a familiaridade de certos conceitos e nomes, o Monge não conseguiu evitar uma crescente curiosidade sobre o que haveria mais a conhecer sobre aquele tema.
Eram blasfêmias, com certeza. Blasfêmias que adocicaram o sabor pelo conhecimento.
Foram mais algumas visitas em que brilharam os olhos de Nícolas. Para seu espanto, o Monge pedia outro livro, e mais outro, e mais outro. Todos dissimuladamente passados com a devolução do anterior.
Em meio a esse processo, Nícolas assombrou-se com um pedido simples. Zacarias queria um caderno, de preferência de capas duas e com muitas folhas. Soerguendo as sobrancelhas, Nícolas exultou. Jamais Zacarias ficaria sabendo que seu irmão comprara dois naqueles moldes no mesmo dia. Não apenas isso. Tinha-os consigo na valise. Mais uma caneta azul e uma preta.
Foi a partir de então que as visitas de Nícolas iniciaram o ciclo de perguntas sobre sonhos.
Zacarias mesmo agora não entendia o porquê de ter atavicamente negado ao irmão que estivesse sonhando as mesmas coisas. Que nos sonhos ambos interagiam. Eram amigos de seres que retornariam em breve. Agora não poderia mais lhe dizer. Antes do final de semana passado chegara a notícia para que todos orassem, pois o conhecido amigo de todos, Nícolas Gemma, havia morrido num acidente de carro.
O Monge bem adivinhara o crime exponencial. Nícolas se suicidara.
Zacarias deu-se conta de que estava já há algum tempo parado ali. Próximo do rio, no escuro. Certamente o estariam procurando no Mosteiro.
Não desejava ver mais nenhum amanhecer.
Não suportaria vivenciar mais nenhuma mentira. O Clero esmerava-se em ver a grande obra de Deus iluminando os céus da Terra com dois Sóis maravilhosos que representam o tempo da bonança. O ainda pequenino “Sol” já marcava sua presença no mundo todo. Os dias estavam mais quentes. Derretendo o que restara da fé do Monge Zacarias.
As águas o acolheram num abraço amigo. Num carinho em que reconheceu o doce e fraterno amplexo de Nícolas, bem-aventurado e bem acompanhado.
Afinal, não existem pecados.


Marco A L Silva



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